O Português Arcaico do Século XV
Razoões desvairadas, que alguuns fallavam sobre o casamento del Rei Dom Fernamdo
Quamdo foi sabudo pello reino, como el Rei reçebera de praça
Dona Lionor por sua molher, e lhe beijarom a maão todos por Rainha, foi
o poboo de tal feito mui maravilhado, muito mais que da primeira; por
que ante desto nom enbargando que o alguuns sospeitassem, por o
gramde e honrroso geito que viiam a elRei teer com ella, nom eram
porem çertos se era sua molher ou nom; e muitos duvidamdo, cuidavom
que se emfa daria elRei della, e que depois casaria segundo perteemçia
a seu real estado: e huuns e outros todos fallavam desvairadas razõoes
sobresto, maravilhamdose muito delRei nom emtemder quamto desfazia
em si, por se comtemtar de tal casamento. E delles diziam que melhor
fezera elRei teella por tempo, e des i casar com outra molher; mas que
esto era cousa que mui poucos ou ne nhuum, posto que emtemdessem
que tal amor lhe era danoso, o leixavom depois e desemparavom,
moormente nos mançebos anos. E leixadas as fallas dalguuns
simprezes, que em favor delle razoavom, dizendo que nom era
maravilha o que elRei fezera, e que ja a outros acomteçera semelhavel
erro, avemdo gramde amor a alguumas molheres; dos ditos dos
emtemdidos fundados em siso, alguuma cousa digamos em breve: os
quaaes fallamdo em esto o que pareçia, diziam que tal bem queremça
era muito demgeitar, moormente nos Reis e senhores, que mais que
nenhuuns dos outros desfaziam em si per liamça de taaes amores. Ca
pois que os antiigos derom por doutrina, que ho Rei na molher que
ouvesse de tomar, principalmente devia desguar dar nobreza de
geeraçom, mais que outra alguuma cousa, que aquel que o comtrario
desto fazia, nom lhe viinha de boom siso, mas de samdiçe, salvo se
husamça dos homeens em tal feito lhe emprestasse nome de sesudo: e
pois que elRei Dom Fernamdo leixava filhas de tam altos Reis; com que
lhe davom gramdes e homrrosos casamentos, e tomava Dona Lionor,
que tantos com trairos tiinha pera o nom ser, que bem devia seer posto
no conto de taaes. Outros diziam, que isto era assi como door da qual
ao homem prazia e nom prazia, dizemdo que todollos sabedores
concordavom, que todo homem namorado tem huuma espeçia de
samdiçe; e esto por duas razoões, a primeira por que aquello que em
alguuns he causa intrimseca das outras maneiras de sam diçe, he em
estes causa de taaes amores: a segunda por que a virtude extimativa,
que he emperatriz das outras potemçias da alma açerca das cousas
senssivees, he tam doemte em taaes homeens, que nom julga o ogeito
da cousa que vee tal qual elle he, mas tal qual a elle parece; ca el jullga
a fea por fremosa, e aquella que traz dampno seer a elle proveitosa; e
por tanto todo juizo da razom he sovertido açerca de tal ogeito, em tanto
que qual quer outra cousa que lhe consselhem, podera bem reçeber;
mas quamto açena de tal molher a elle prazivel, cousa que lhe digam do
boom comsselho nom reçebe, se o consselho he que a leixe e nom cure
delle, ante lhe faz huum acreçentamento de door, que he fora de todo
boom juizo; de guisa que se he tal pessoa o que comsselhou, de que
possa tomar vimgamça, tomaa assi como fez el Rei Dom Fernamdo, que
mandou fazer justiça em alguuns do seu poboo, que o bem
comsselhavom em semelhamte caso, segundo ja teendes ouvido.
Crónica de D. Fernando de Fernão Lopes.