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"A Minha Guerra"

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“Portugal desprezou soldados africanos”

A minha guerra

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Mexia Alves em pé, num barco Sintex, com o qual se chegava ao destacamento de Mato Cão

Quando a guerra acabou, os homens das forças africanas foram fuzilados, presos ou agredidos pelas autoridades locais

"Entrei para a recruta no Quartel de Mafra em Janeiro de 1971, finda a qual fui "escolhido voluntariamente" para me apresentar em Lamego onde fiz a especialidade de Operações Especiais, vulgo, Rangers. Daí fui colocado no Regimento da Serra do Pilar, em Gaia, onde a partir de Outubro de 1971 começámos a preparar o Batalhão, com o qual iria embarcar no ‘Niassa’, a 21 de Dezembro de 1971, rumo à Guiné.

Chegámos e fomos enviados para a ilha de Bolama onde fizemos a IAO, (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional), com vista à adaptação não só ao clima, mas às condições de guerra da Guiné. O meu Batalhão, BART 3873, ficou sediado em Bambadinca (zona leste), e a minha companhia, CART 3492, foi para o aquartelamento mais longe da sede, no Xitole.

Durante os sete ou oito meses da minha estadia no Xitole, tivemos flagelações ao quartel, sem baixas, nem ferimentos entre os militares. Houve uma ou duas emboscadas, sem problemas para as nossas tropas, tendo sido reportadas por informadores algumas baixas no PAIGC.

Fui então enviado para comandar um Pelotão Independente de Africanos, o Pel. Caç Nat. 52, sediado nessa altura na Ponte do rio Udunduma, na estrada Bambadinca/Xime. Era um sítio sem condições de vida, mas onde estive muito pouco tempo e sem problemas. Depois o Pelotão foi colocado no Destacamento de Mato Cão, na margem norte do rio Geba, a meio caminho entre o Xime e Bambadinca, sendo a nossa primeira missão assegurar a navegabilidade desse troço do Geba.

GUERRILHA

As condições de vida eram francamente más: dormíamos em buracos abertos no chão, ladeados de bidons e cobertos de paus de cibo e sem luz. Devo ter estado em Mato Cão cerca de nove meses. Mantivemos uma forte actividade operacional – o melhor "remédio" neste tipo de guerra de guerrilha.

Posteriormente, fui colocado na C. Caç. 15, (Companhias de Africanos), sediada em Mansoa, constituída na sua esmagadora maioria por Balantas, e que fazia operações de intervenção do Batalhão de Mansoa, segurança à estrada em construção de Mansoa/Portogole, e segurança às colunas que passavam para Norte, junto à mata do Morés. Aqui e até ao fim da comissão tive uma actividade operacional muito intensa, com contactos com o inimigo de então, mas graças a Deus sem baixas na nossa Companhia a registar.

CAMARADAS

Regressei a Portugal, em rendição individual, em avião militar em 21 de Dezembro de 1973. Afirma-se, hoje em dia, que a guerra na Guiné estaria perdida militarmente. Não creio. Só motivos políticos justificam tal afirmação. Ainda hoje não esqueço a dedicação e empenho das forças africanas constituídas por guineenses, que honrosamente comandei, e exprimir a minha revolta pelo abandono a que foram votados. Muitos foram fuzilados e outros presos, agredidos, pelas autoridades que tomaram conta da Guiné – desprezados por Portugal.

Quero exprimir a minha revolta pelo ignominioso tratamento dado aos combatentes, não só da Guiné, mas também de Angola e Moçambique, por parte dos governos de Portugal. Há ex-militares que esperam o resultado de processos 35 anos depois do fim da guerra. Se antes como se dizia éramos "carne para canhão", hoje – vivos – somos transparentes.

PERFIL

Nome: Joaquim Mexia Alves

Comissões: Guiné (1971/73)

Força: Rangers

Actualidade: Administrador das Termas de Monte Real, 61 anos, quatro filhos e dois netos

Por:Joaquim Mexia Alves, Guiné (1971-1973)
 

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“Morreram o Praxedes e o Elísio Bravo”

A minha guerra

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‘Staff’ da secretaria do sector S, em Cabinda. José Manuel Vacas está no centro da foto, com óculos

Foi num tiroteio que nos apanhou desguarnecidos numa lavra. Foram atingidos dois camaradas, de Sesimbra e Águas de Moura

Parti a 15 de Abril de 1966 no navio ‘Niassa’, integrado no Batalhão de Cavalaria 1883 – Companhia de Cavalaria 1535. Era alferes miliciano operacional, comandante de um grupo de combate. Íamos fazer operações de reconhecimento para evitar ataques ao aquartelamento e localizar as forças inimigas.

A nossa primeira operação especial foi em Maria Fernanda Zala. Dez dias. Fomos de viaturas pelo Bico do Pato (curvas e contracurvas onde normalmente éramos atacados), mas passámos sem problemas. Deixámos viaturas no aquartelamento de Zala e seguimos a pé para um morro, onde ficámos oito dias. Na véspera da partida fomos atacados com morteiros e rajadas de armas automáticas. Mas não houve baixas.

Na segunda operação especial – Canassala –, que durou oito dias, era necessário limpar a área entre a Beira Baixa e Nambuangongo, onde se começava a abrir a picada do Canacassala. Deixaram-nos na Beira Baixa e começámos a caminhar pelo trajecto onde iria ser aberta a nova picada. Fomos atacados logo no primeiro dia. Um dos guias ficou ferido. Pedimos apoio aéreo e continuámos. Ao fim do quarto dia, verificámos que o outro guia nos estava a enganar. Levava-nos para locais onde o capim era altíssimo. Não havia água e houve quem urinasse e, com um comprimido de Olozone, depois bebesse a urina.

A minha terceira operação especial – Maria Fernanda –, ao longo do rio Dange, prolongou--se meia dúzia de dias. Foi uma operação conjunta com sete companhias, incluindo comandos pára-quedistas e a actuação dos F-16 da Força Aérea. Saímos de Maria Fernanda em viaturas até à missão, onde começámos a seguir o rumo pré-estabelecido para a nossa companhia, enquanto as outras companhias avançavam por itinerários diferentes.

O primeiro ataque foi no primeiro dia, com fogo cerrado. Entretanto com estas caminhadas, o meu joelho inchava e provocava-me dores diabólicas.

No dia seguinte fomos avisados de que os F-16 iam bombardear algures à nossa frente. Cerca de duas horas após terem terminado os voos rasantes dos F-16, avançámos com a percepção de que estávamos numa zona perigosa. O meu grupo ia à frente da companhia.

Caminhávamos por um trilho no meio da floresta quando avistámos uma lavra junto ao rio Dange que terminava novamente na floresta. Dei ordens para as três G3 de cano reforçado ocuparem as primeiras posições, seguidas da MG, e entrámos na lavra em ‘bicha de pirilau’.

DOIS CAMARADAS MORTOS

Começou um tiroteio vindo de todo o lado, até de uma pequena ilha no Dange. Apanhados num sítio plano sem protecção, respondemos mas não conseguimos evitar que o Praxedes (de Águas de Moura) tivesse morte imediata. Uma bala perfurou-lhe o abdómen, roubando a vida ao melhor atirador de morteiros da companhia. Uma bala apanhou também Elísio Bravo (de Sesimbra). Entrou-lhe pelo orifício do ouvido esquerdo e ficou alojada no crânio. Faleceu dois dias depois, na véspera de NAtal. Ficámos muito abalados.

Alguns dias mais tarde, já não aguentava as dores no joelho e segui para o Hospital de Luanda.

A segunda comissão que tive foi para mim uma segunda guerra, totalmente diferente. Fui para Cabinda, para chefe da secretaria do sector S, depois recebi ordem de marcha para Tomboco, para, na qualidade de oficial de reabastecimento, substituir o oficial que o comandante do Batalhão 1903 tinha dispensado. Depois fomos para Santo António do Zaire e, finalmente, Ambrizete, mês e meio antes de regressar a Portugal.

PERFIL

Nome: José Manuel Vacas

Comissões: Angola (1966/68)

Força: Batalhão de Cavalaria 1883 e 1903A

Actualidade: É casado e tem quatro filhos e seis netos. Aos 69 anos, é gerente comercial

Por:José Manuel Vacas, Angola (1966-1968)​
 

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“Era difícil habituarmo-nos à sede”

A minha guerra

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Operação na zona do Burmuleo, em 1969

O meu primeiro contacto com as operações deu-se em Junho de 1968, quando fui enviado para destacamentos em Canjadude e Che-che

Fui mobilizado em rendição individual, destinado à Companhia de Caçadores nº 5, uma unidade da Guarnição Normal do CTIG (Comando Territorial Independente da Guiné), que tinha cabos e Soldados da Metrópole de diversas especialidades. Cheguei no dia 2 de Junho de 1968 (embarquei em Lisboa a 28 de Maio) a bordo do NM Alenquer.

O barco transportava material de guerra e outros materiais para as tropas em serviço na província. Antes, estava no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 2, em Torres Novas. Tinha sido promovido ao posto de 1º Cabo Miliciano, com a especialidade de Transmissões de Infantaria, no dia 18 de Abril de 1968. Fui informado da mobilização, teatro de operações e unidade de destino perto do final desse mês.

A par da preocupação da chegada a um teatro de guerra, havia a expectativa de tomar contacto com realidades, até aí desconhecidas. A ida para a guerra já era como que uma certeza, que se desenrolava desde 1961 , contrariamente ao que o Regime pretendia deixar transparecer que o conflito era um assunto já resolvido, o que a realidade desmentia uma vez que se procedia à formação de mais soldados para aumentar a presença militar nos teatros de operações.

Quando cheguei à Guiné em 1968, com seis anos de guerra já decorridos, havia a expectativa de, no terreno, viver o que já me tinha sido relatado, apesar de muito pouco explícito, como eu próprio o faria ao regressar, como defesa e tentativa de esquecer esse passado recente e sempre presente.

ADAPTAÇÃO DIFÍCIL

Para mim como para todos, mas todos, apesar de muitos quererem mostrar o contrário, estávamos numa terra que, apesar de a sentirmos como Portugal, não era o nosso cantinho, na nossa cidade ou na nossa aldeia. Numa unidade africana, como a minha, o número de metropolitanos era reduzido (seríamos no máximo 50 europeus). Também a rotação do pessoal era frequente, o que poderia originar, um sentimento de não integração, dada a alteração ser cíclica, com a partida de camaradas e a chegada de novos, até que chega a nossa vez. O clima também provocava alterações sensíveis no nosso comportamento, com consequências físicas e psicológicas.

A unidade para a qual fui enviado tinha a sede e o comando em Nova Lamego (actual Gabu) e os grupos de combate a guarnecer os destacamentos de Canjadude, Cabuca e Che-che, todos na Zona Leste.

O meu primeiro contacto com as operações deu-se, ainda no mês de Junho de 1968, quando fui enviado para visitar os destacamentos da companhia instalados em Canjadude e Che-che, aproveitando a coluna que iria retirar as nossas tropas do destacamento de Béli e colocá-las em Madina do Boé (evacuada, posteriormente, em Fevereiro de 1969). Ao longo do percurso, viam-se viaturas destruídas por minas, as crateras abertas pelas mesmas minas e ouvíamos o rebentamento das bombas lançadas pelos aviões, tentando limpar os possíveis locais de esconderijo das forças adversas. Era difícil habituarmo--nos ao novo tipo de refeições (as célebres rações de combate) e à sede constante que nos afligia a todos.

Deixei o destacamento de Canjadude, para onde fora destacada a Companhia em Agosto de 1969, no dia 28 de Maio de 1970, exactamente dois anos após ter largado do Tejo. Regressei no ‘Rita Maria’, um barco civil , que partiu de Bissau a 2 de Junho de 1970. Aportámos em Lisboa no dia 10 desse mesmo mês.

PERFIL

Nome: José Marcelino

Comissão: Guiné (1968/70)

Força: Companhia de Caçadores nº 5

Actualidade: Tem 63 anos, é casado e tem três filhos e dois netos. Vive em Odivelas e é técnico oficial de contas

Por:José Marcelino, Guiné (1968-1970)
 

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"Deixou marcas para toda a vida"

A Minha Guerra

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Fiquei num lugar de má fama: Tomboco. Mas no fim da comissão pude ter comigo a minha mulher e o meu filho. Angola ficou-nos na memória.

Quando desempenhava as minhas funções de furriel miliciano, com a especialidade de vagomestre da alimentação, no depósito de géneros do Quartel de Infantaria Nº 6, no Porto, fui mobilizado para Angola. Fui para Santa Margarida, onde se formou o Batalhão de Caçadores 1903, do qual eu fiz parte na Companhia do Comando C.C.S. com a especialidade de vagomestre do Batalhão, Serviços de Reabastecimentos.

Embarcamos em Alcântara, Lisboa, no dia 18 de Fevereiro de 1967 no navio ‘Vera Cruz' e chegámos a Luanda no dia 27. Permanecemos no aquartelamento do Grafanil durante cinco dias, tendo o Batalhão seguido depois para o Norte de Angola. A Companhia do Comando, C.C.S., à qual eu pertencia na qualidade de furriel miliciano de Reabastecimentos, ficou instalada em Tomboco.

Herança negra

Os primeiros tempos foram difíceis. Sabíamos que o aquartelamento em Tomboco sempre tinha sido um alvo. Os grupos de terroristas atacavam, provocando feridos e mortes entre os militares. As forças militares anteriores tinham tido muitos problemas. Em Julho de 1964, o dia 23 ficou para a História - os terroristas atacaram o Tomboco e raptaram 86 nativos ali residentes. As nossas tropas sofreram um ferido. Dois anos depois, no mesmo mês, a dia 9, uma emboscada a uma coluna de reabastecimento entre Tomboco-Lufico provocou cinco mortos e 16 feridos graves; em Dezembro, a 11, as tropas detectaram um grupo de terroristas composto por 70 elementos, na estrada de Ambrizete- Tomboco, junto ao rio M'Bridge. Na fuga, uns morreram, outros desapareceram.

É evidente que esta memória foi grande motivo de preocupação para todos nós. Mas o nosso Batalhão não passou por estas situações. Tivemos cinco mortos mas devido a acidentes.

Valeu-nos a experiência do nosso comandante coronel Orlando Andrade e do nosso capitão Eugénio Fernandes que já conheciam aquela zona. Faziam a apologia da acção psicossocial por forma a evitar ataques terroristas. Método de sucesso. Tanto Sóbas como a população negra ali existente queriam que passássemos ali toda a comissão militar.

Lembro-me que, no início, quando ia à sanzala comprar os géneros alimentícios, sentia os olhares de total desconfiança dos negros e por muito que eu perguntasse a quem pertenciam os alimentos ninguém me respondia. Então tomei a iniciativa de pegar nos alimentos e colocá-los no jipe com a ajuda do condutor. Foi um trabalho que se repetiu quinze dias. Depois os negros passaram a ir levar os géneros ao quartel, deixando o pagamento ao meu critério. Manifestavam confiança.

Em Janeiro de 1968 fomos transferidos para Santo António do Zaire. Aqui encontrámos mais tranquilidade, de tal forma que tive a oportunidade de poder ter a minha mulher e filho comigo, porque existiam umas casas destinadas às famílias dos militares casados. A minha mulher gostou do tempo em que ali esteve. O meu filho, que ali fez os cinco anos, tem ainda hoje recordações, sobretudo dos dois macacos pequenos que tínhamos.

Fomos transferidos para Ambrizete. Partilhámos uma casa com o meu colega e amigo da mesma Companhia do Comando, C.C.S., furriel Hélder Freire, mulher e filha.

Regressámos no ‘Vera Cruz'. Chegámos a Lisboa a 3 de Junho de 1969. Foi uma guerra sem razão de existir, mas que o Governo daquela época nos obrigava a cumprir. Deixou marcas para toda a vida.

Por:Fernando Dias - Angola 1966/67​
 

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“Um terço do destacamento foi ferido”

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Ao centro com oficiais do Exército, num bote no rio Zambeze

Integrei os fuzileiros como enfermeiro. Entre o horror em Angola, a minha missão foi ajudar os aflitos, curar as feridas da guerra.

Chegámos a Angola no dia 10 de Julho de 1965. Fui integrado no Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 2, como enfermeiro, e fizemos a viagem a bordo do navio petroleiro ‘S. Gabriel’, da Armada, adaptado para o transporte de pessoal. Quando saímos da Base Naval do Alfeite já sabíamos que o nosso destino era Angola. No ano anterior, 1964, fizera o Curso de Fuzileiro Especial, em Vale do Zebro, por imposição militar, pois estava com 31 anos de idade.

Após desembarcarmos, fomos ocupar uma zona militar chamada Belas, a 13 km de Luanda. Recordo a ‘talhe de foice’ apenas as nossas primeiras operações. Na floresta do Maiombe, a norte de Cabinda, passámos o Natal e o Fim de Ano de 1965/66.

ENTRE BALAS E FERIDOS

E foi precisamente à meia-noite do dia de Natal de 1966 que fomos em socorro de um pequeno grupo de soldados do Exército, cercado e atacado perto da fronteira com a Zâmbia. Resolvemos o problema e aprisionámos três guerrilheiros. Depois precisámos nós do Exército numa picada a caminho do Clubombo – a minha viatura caiu em cheio numa emboscada. Catorze fuzileiros foram feridos. Uma indígena a quem havíamos dado boleia ficou pendurada na viatura, morta. O meu banco, ao lado do condutor, ficou com 8 buracos de bala.

Foi também no rio Zambeze que a nossa lancha foi violentamente atacada a partir das margens. Ainda no interior das matas dos Dembos, o nosso destacamento enfrentou uma das piores situações de guerra. Fomos atacados às 6 da manhã. Os guerrilheiros recuaram e desapareceram – mas às duas horas da tarde sofremos o mais terrível dos combates. Feridos por todo o lado, dois em estado grave, estendidos no chão. Lembro-me que gastei hemostáticos, injecções para as dores, de ter montado balões de soro, posto garrotes e pensos. Alguns fuzileiros não estavam feridos mas sim agitados. Dei-lhes calmantes, via oral, e gastei o que me restava de ampolas de relaxante muscular.

Cerca de 25 homens foram levados de helicóptero para Luanda, um terço do destacamento. As munições começaram a escassear. Creio que estávamos nos primeiros meses de 1966, quando voltámos às matas, perto do rio Dange. Uma companhia do Exército viera juntar-se a nós. Uma tarde, uma granada defensiva (a tal que espalha estilhaços por todo o lado) explodiu mesmo à frente de um furriel dos Comandos, decepando-lhe os dois antebraços pelos cotovelos e queimando-o até aos testículos.

O relógio que ele tinha no pulso despedaçou-se com o antebraço e atingiu no rosto o 3º oficial do nosso destacamento, cegando-o. Pedi aos fuzileiros que agarrassem o furriel, pois ele corria e saltava, completamente descontrolado e alucinado. Não vertia uma pinga de sangue, pois a alta temperatura do explosivo estancou-lhe as hemorragias. E foi a bater com as pás nos ramos das árvores que um helicóptero, finalmente, baixou até poder aceitar o ferido. Entretanto, escrevi à pressa numa folha de bloco, para os médicos do Hospital de Luanda, a dose maciça que lhe havia injectado, pois a seguir o desfalecimento seria mortal.

Até no horror a luz brilha. Um dia, na floresta do Maiombe, em Cabinda, na lagoa do Tchiquinquati, com 9 km de largura e 14 de comprimento, vi-me, só com a minha bolsa de primeiros-socorros, cercado por 200 guerrilheiros da UPA. O meu bote de fuzileiro estava amarrado a uma pequena árvore, nas margens do lago. Ninguém lhe tocou.

A 24 de Junho de 1967, pelas 18 horas, largámos de Luanda. Eu, a minha mulher e a nossa filha, de cinco anos. A bordo do ‘Vera Cruz’, com o nosso destacamento, vinham mais 1200 militares.

PERFIL

Nome: Almiro Nobre Gregório

Comissão: Angola (1965/67)

Força: Destacamento nº 2 de Fuzileiros Especiais – Marinha de Guerra Portuguesa

Actualidade: Enfermeiro reformado. Casado, dois filhos (Ana Maria já falecida) e uma neta
Por: Almiro Nobre Gregório, Angola (1965-1967)​
 

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“Bombardeados de duas em duas horas”

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Coluna para Nova Lamego. Um momento de pausa antes. À frente, o motorista africano.

A operação mais complicada foi a ‘Duas Quinas’. Fomos atacados até ao raiar do sol. Mas, mais do que as memórias, são os amigos que perduram

A 8 de Janeiro fui forçado a abandonar os estudos em Coimbra para frequentar o 1º ciclo do Curso de Sargentos Milicianos, na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Tirei a Especialidade de Transmissões de Infantaria, em Tavira, mas fui parar ao RI 8, em Braga, para dar instrução a recrutas do contingente geral. Fui mobilizado em rendição individual para a Guiné. Embarquei já Furriel Miliciano no navio mercante ‘Arraiolos’, que transportava material de guerra.

Cheguei à Guiné nos primeiros dias do ano de 1970. Tinha por lema "viver um dia de cada vez e pensar que o dia seguinte seria certamente melhor do que o anterior". Ajudou-me nos dois anos e seis dias de comissão.

Ia para o Olossato, cabia-me a Companhia de Caçadores 2402, que estava próxima da mata do Mores – local perigoso.

No dia 6 de Fevereiro de 1970, às 18h50, tive o meu baptismo de fogo. Um grupo inimigo flagelou com morteiro 82 e armas ligeiras automáticas a povoação e o quartel do Olossato. Os militares escaparam ilesos, mas na povoação de etnia balanta, onde se realizava um casamento, morreram sete pessoas, 36 ficaram gravemente feridas e 55 tiveram ferimentos ligeiros.

A minha estadia na Companhia foi curta, pois ao conferir a carga de material de transmissões verifiquei que havia faltas. Vim a Bissau, cumprindo as ordens de quem não soube ter o material à sua guarda.

Chegado a Teixeira Pinto, só com a boa vontade dos elementos das companhia locais foi possível recuperar a totalidade do material. Tive de ir sozinho, com um motorista, num jipe a Jolmete (local onde, em Abril de 1970, seriam degolados três majores e um alferes).

O MEU ‘PASSAPORTE’

Em 24 de Abril de 1970 regressei a Bissau com a Companhia de Caçadores 2402 em fim de comissão. Na informação prestada pelo Comandante ao Comando-chefe, ficou esquecida a minha odisseia em busca dos rádios perdidos. Perdidos por ele.

Tive ‘passaporte’ Canjadude Companhia de Caçadores 5, a C. Caç 5. Apanhei uma lancha particular do cais de Bissau com destino a Babadinca.

Já navegávamos pelo rio Geba quando o comandante da lancha disse aos militares para se esconderem debaixo de oleados. A coberto da noite, a lancha fazia descarga de mantimentos para o P.A.I.G.C.

Cheguei à C. Caç 5, Companhia dos Gatos Pretos (Justos e Valorosos). A Secção de Transmissões era constituída por 10 a 15 elementos. Comandei-a durante cerca de 19 meses.

‘DUAS QUINAS’

A operação mais complicada foi a ‘Duas Quinas’, em 17 de Abril de 1971, quando a C. Caç 5 retomou o aquartelamento do Ché-Ché com mais dois pelotões da C.Art. 3332. Chegados ao Ché-Ché, retiraram-se todas as armadilhas existentes no Cavalo de Frisa (porta móvel constituída por arame farpado e madeira) e a única viatura que entrou para dentro do aquartelamento foi a Mercedes Benz (viatura de Transmissões).

Estava a começar a escurecer e ainda se encontravam o Cabo Silva e o Cabo Viriato em cima das árvores a fixar as antenas para o emissor-receptor AN/GR-C9 – que iria ser o nosso meio de comunicação com Canjadude – quando se ouviram rajadas de metralhadora. Respondemos ao fogo com tiro de morteiro. Tudo voltou à normalidade. Duas horas depois, novo ataque. Desta feita, com armamento mais pesado e de duas em duas horas, até ao raiar do sol.

Saí de Canjadude, em fim de comissão, no dia 4 de Dezembro de 1971. Na noite de 6 de Janeiro cheguei a Figo Maduro.

Na Guiné fiz amizades que ainda hoje perduram.

PERFIL

Nome: Alberto Antunes

Comissão: Guiné (1970/72)

Força: Companhia de Caçadores 2402 e Companhia de Caçadores nº 5

Actualidade: Engenheiro aposentado do departamento de Física da Universidade de Coimbra. É casado, tem dois filhos e duas netas
Por:Alberto Antunes, Guiné (1970-1972)
 

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“Estivemos isolados durante dez meses”

A Minha Guerra

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Junto à sala de convívio dos soldados, no quartel de Bafatá

“Quando me perguntam as diferenças [entre as zonas onde fiz a Guerra], costumo dizer: o Cachil seria o inferno e Bafatá o paraíso”

Soldado de transmissões mobilizado para a guerra da Guiné, embarquei em 27 de Novembro de 1963, integrado na C. Caç. 557, no navio mercante ‘Ana Mafalda’. Desembarquei no cais de Pidjiguiti, em Bissau, a 3 de Dezembro. Até ao princípio de Janeiro de 64, a C. Caç. 557 foi sendo deslocada por fracções para Catió, a fim de integrar as forças que iam participar na Operação Tridente.

No dia 23 de Janeiro de 1964, partiram de Catió uma lancha pequena de desembarque, uma lancha média e uma lancha de fiscalização, que rumaram ao Cachil, levando a bordo a C. Caç. 557 e o 7º destacamento de fuzileiros, de modo a ocuparem o sector do Cachil.

Começavam os contratempos. No desembarque no rio Cumbijã, com maré baixa, sai, em primeiro, lugar uma secção de fuzileiros, homens treinados a andar no lodo. Os primeiros três ou quatro conseguiram alcançar terra, mas os dois seguintes ficaram atolados. Quase submersos, foram puxados com uma corda para um bote de borracha (zebro). Os fuzileiros em terra cortaram e partiram vários ramos de árvores e conseguiram fazer um improvisado cais, onde todos os militares desembarcaram.

Percorridos cerca de 500 metros, seguiu-se uma bifurcação. O capim era muito alto e, para não sermos surpreendidos pelo inimigo e de modo a facilitar a nossa progressão, os fuzileiros atearam lume ao capim. Foram ouvidos alguns disparos, mas notava-se que eram tiros de aviso. A noite aproximava-se, mas alcançou-se a zona da mata do Cachil. No local onde o capim ardeu, cavámos os abrigos e lá pernoitámos duas noites.

A 26 de Janeiro, ocupámos a pequena mata do Cachil, onde construímos o quartel, e lá permanecemos, naquele isolamento, dez meses e uma semana. O resto da comissão foi passada em Bissau e Bafatá. Quando me perguntam as diferenças, costumo dizer: o Cachil seria o Inferno e Bafatá o Paraíso. A 29 de Janeiro, sofremos a única baixa em combate: o soldado João A. Bicho, natural de Fortios, Portalegre, que hoje repousa no cemitério de Bissau, talhão militar campa 670. A C. Caç. 557 passou 55 dias contínuos, entre 23 de Janeiro de 1964 e 17 de Março, tendo como alimentação apenas a ração de combate.

O regresso também teve uma marca de guerra. É que três dias antes do embarque, e depois de se ter feito todo o espólio do material de guerra, recebemos uma ordem para participar numa última operação.

A nossa revolta foi um não unânime. O capitão mandou formar a companhia para nos dizer: "meus amigos e camaradas, que tive a honra de comandar ao longo destes dois anos. Vós sois, ainda, neste momento, militares. E a recusa a uma ordem do CTIG resulta em que todos, sem excepção, vão para o forte de Elvas ou coisa parecida. Mas se até aqui não fomos heróis, não é agora que o vamos ser. Sigam já e em ordem e levantem o vosso material." A ordem foi acatada e cumprida por todos. A missão foi de apoio. Era mais para dar força moral aos novos camaradas, que chegavam.

O regresso a Bissau foi rápido. Em Bambadinca, embarcámos no barco ‘A Bor’ para Bissau. Nem ordem tivemos para nos despedirmos dos amigos. Enfiados no Niassa, atracámos no cais da ferrugem, em Lisboa, a 3 de Novembro de 1965, onde os meus dois sobrinhos e as minhas duas irmãs me esperavam e felicitaram, abraçaram, beijaram e abonaram.

PERFIL

Nome: José Botelho Colaço

Comissão: Guiné (1963/65)

Força: Companhia de Caçadores 557

Actualidade: Casado, com uma filha. Tem 67 anos. Trabalhou como técnico metalúrgico na indústria açucareira e está reformado.
Por: José Botelho Colaço, Guiné (1963-1965)
 

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“Vivia-se em estado permanente de alerta”

A Minha Guerra

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No Destacamento do Cheche, na distribuição do correio: os famosos aerogramas, que traziam notícias de familiares e amigos

O dia mais marcante foi quando assisti ao rebentamento de uma mina que tirou a vida ao senhor major de engenharia pedra e a dois furriéis

Concluído, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, no 1º trimestre de 1967, o Curso de Oficiais Milicianos, e após ministrar uma recruta no Regimento de Infantaria de Viseu ( RI 14), fui mobilizado, em Junho desse ano, para uma comissão de serviço na Guiné-Bissau, em rendição individual. Nos primeiros dias de Agosto, embarquei no navio ‘Alfredo da Silva’.

À chegada, tinha à espera um representante da Companhia Geral de Adidos, posteriormente Depósito Geral de Adidos, que me conduziu ao respectivo Aquartelamento, localizado em Brá. Fui substituir um Alferes Miliciano, de Coimbra, que, quando regressou à Metrópole, desempenhava as funções de Oficial de Justiça. Embora fosse de Infantaria e não tivesse qualquer formação académica em Direito, julgo que, com trabalho e muitas trocas de impressões com camaradas, desempenhei, durante três meses, com rigor e competência as funções.

Neste período, a adaptação foi relativamente fácil, pois, apesar das agruras do clima e da ausência dos entes queridos, as privações eram quase nulas. Chamo a esse período "a guerra da caneta". Como não foi possível a minha permanência definitiva em Bissau, em Dezembro de 1967 fui colocado na CCAÇ 5 (Companhia de Caçadores 5), uma Unidade constituída, essencialmente, por africanos. Embora houvesse tabancas, feitas de madeira e capim, as instalações eram subterrâneas (os chamados abrigos), cavadas no solo e com cobertura à base de troncos de madeira. Vivia-se em estado permanente de alerta, pois, quase diariamente, o sítio era fustigado com tiros de morteiro, provenientes da margem esquerda do rio Corubal.

PALCO DE GUERRA

Felizmente, o rio, em frente ao Destacamento, era largo, pelo que os ataques redundaram em fracasso. As missões militares, incumbidas ao Destacamento, além de patrulhamentos na zona, limitavam-se a patrulhar e a "picar" a estrada em terra até Canjadude, no sentido de detectar minas anticarro, aquando das colunas de reabastecimento ao Cheche e/ou a Madina do Boé, e a participar, como reforço, nas deslocações a este último Aquartelamento.

Após ter cumprido uma comissão de serviço, no mato, de mais ou menos 13 meses, repartida pelo Cheche (mais ou menos 11 meses) e por Canjadude (o restante), voltei a Bissau, novamente ao Depósito Geral de Adidos, como responsável pela organização de transportes de regresso dos militares às respectivas Unidades.

Embora não consiga precisar a data, o dia mais marcante, durante a permanência no teatro de guerra, foi quando assisti ao rebentamento de uma mina anticarro, que tirou a vida ao sr. Major de Engenharia Pedra (Oficial de Carreira) e a dois Furriéis Milicianos, também de Engenharia, que se deslocavam ao Cheche, já em fim de comissão, para estudar a possibilidade de uma alternativa à jangada de madeira na travessia do rio Corubal.

Embora ainda tivessem sido transportados com vida, mas muito maltratados, acabaram por falecer a bordo do helicóptero, a caminho do hospital. Um dos furriéis, com as duas pernas quase desfeitas, enquanto lhe prestava, juntamente com o enfermeiro, apoio, virou-se para mim e suplicou: "Estás a ver o estado em que me encontro! Se és meu amigo peço-te que utilizes a tua arma e ponhas fim a este sofrimento." Com o coração desfeito e banhado em lágrimas, tentei confortá-lo e incutir-lhe esperança. Não foi nada fácil.

Regressei à Metrópole, a bordo do navio ‘Uíge’, no início de Setembro de 1969. Cumpri uma comissão de serviço de 25 meses.

PERFIL

Nome: Armando de Oliveira Alves

Comissão: Guiné-Bissau (1967/69)

Força: Companhia de Caçadores nº 5

Actualidade: Reformado da Banca, em 2006, com a categoria profissional de Director. Tem dois filhos, ambos a residir no Brasil, e uma neta
Por: Armando de Oliveira Alves, Guiné-Bissau (1967-1969)​
 

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“Havia mortos e feridos. Só eu estava bem”

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A plantar alfaces, por brincadeira. Um dos ‘agricultores’ era regente agrícola

No início da década de 70 vi a guerra de perto na Guiné. Em terra muito pobre, de gente mais pobre ainda, vi matar e vi morrer.

Fui mobilizado em rendição individual para uma companhia de nativos. Cheguei no dia 21 de Julho de 1970. Guiné era uma província muito pobre. Bissau, a capital, era uma cidade esburacada, suja e para qualquer lado que olhasse só via fardas militares.

No dia 2 Agosto estava em Canjadude e, no dia 3, uma viatura que integrava uma coluna militar para Nova Lamego ( Gabu), fez explodir uma mina anticarro da qual resultaram dois mortos e vários feridos. De entre os feridos, destaco o ex-furriel Moura, que tinha chegado comigo na véspera. Foi um choque terrível. Mas este não foi o único dia trágico.

DIAS TERRÍVEIS

A noite de 15 de Novembro desse ano, quando me encontrava em Nova Lamego, destacado com o pelotão, foi muito violenta. A nível de tropa e população civil tivemos alguns mortos e imensos feridos. Recordo que acompanhei à enfermaria um soldado e só deparava com feridos deitados no chão. Também não posso esquecer quando me encontrava em operação no Chéche.

Por volta das 20 horas fomos atacados com armas ligeiras e roquetes. Por pouco tempo. Mas próximo da meia-noite tivemos fogo intenso, agora com morteiros e canhões. As granadas rebentavam por todo o lado. Perto encontrava-se uma viatura com combustível. Receei que se fosse atingida. Seria uma catástrofe. Felizmente não aconteceu nada. Neste ataque, apesar de fortíssimo, tivemos apenas um morto. Por volta das quatro horas da manhã sofremos novo ataque, em tudo semelhante ao da meia-noite.

Meses mais tarde, em Agosto de 1971, quando nos preparávamos para entrar no aquartelamento, sofremos uma emboscada. Salifo Embaló, o soldado africano que ia à minha frente, levou um tiro na cabeça e caiu como se fosse uma cobra – enroscado. Atrás de mim, outros dois soldados gritavam com dores. Tinham sido atingidos pelo inimigo. Só havia mortos e feridos. Eu era o único que estava bem.

Via na minha frente, a escassos metros, as balas do inimigo. Calei a minha arma. Queria que o inimigo pensasse que me tinha abatido. Precupava-me também em não me deixar apanhar, corpo a corpo, podia ser esfaqueado. A noite estava clara. Podia ser surpreendido pelo inimigo. Os primeiros minutos foram difíceis. Para me proteger e proteger os outros tive de manter a calma.

Recordo que, na noite de 11 de Fevereiro de 1971, no ataque da meia-noite, caiu próximo de mim uma granada de morteiro. Encheu-me de terra. Larguei a arma e percorri o corpo com as mãos para me certificar se tinha sido atingido por algum estilhaço. Com toda a sorte do mundo, saí ileso.

A guerra é o escárnio da vida. O ódio está sempre presente. Mata--se sem se saber bem porquê.

AMIZADES

Lembro estas situações sem rancor ou ódio, embora não concordasse com a guerra. Tive até momentos que lembro com alguma saudade. Lembro os soldados africanos, de quem gostei muito. Ao que parece, a maioria foi morta após a saída dos portugueses.

Fazem-se irmãos? Talvez. Há uma aproximação muito grande. Em Canjadude, onde estive, vivíamos um clima de verdadeira amizade fraterna. Aqui quero realçar o comandante da companhia, capitão Arnaldo Costeira – militar de carreira, humano e interessado pelos problemas dos outros. Lembro-me de que permitiu que um furriel mecânico, castigado numa outra companhia e colocado na CCaç. 5, recebesse a visita da esposa.

A minha guerra terminou no dia 14 de Julho de 1972. Regressei num avião do exército.

PERFIL

Nome: Alberto Pereira Caetano

Comissão: Guiné (1970/72)

Unidade: Companhia Caçadores nº 5

Actualidade: 62 anos, residente em Marco de Canaveses, reformado da Banca. Continua a elaborar pareceres na sua área profissional. É casado e com dois filhos.
Por: Alberto Pereira Caetano, Guiné (1970-1972)​
 

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“Ficava sempre um rasto de tristeza e revolta”

A minha guerra

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Éramos uma família de cerca de trinta pessoas. Aprendi a rir e a chorar quando estava em causa só valores humanos. Fiquei um homem melhor.

Ao fim de 15 meses de serviço militar cumpridos na Metrópole, e quando menos esperava - pois não era normal para um atirador de Infantaria com esse tempo ser mobilizado -, surgiu a notícia... o furriel Penha fora ‘sacado' para cumprir comissão em rendição individual no território da Guiné. Destino: Companhia de Caçadores 5, localizada na zona leste, em Canjadude.

Embarquei no navio ‘Niassa' no dia 25 de Março de 1970. As primeiras impressões quando desembarquei foram de curiosidade e solidão, pois fiquei sozinho em pleno cais com uma mala de cada lado, e se não fosse a boa vontade de um lº cabo delegado em Bissau que me levou ao quartel-general no seu jipe penso que ainda lá estaria. Senti-me a Linda de Suza, aquela da malinha de cartão.

Até chegar a Nova Lamego, vulgo Gabu, foi um turbilhão de emoções, tais como a minha estreia de voo a bordo de um imponente Dakota que ao começar a trabalhar deitava pelos motores chispas de fogo e muito fumo. Por fim lá cheguei ao Gabu, onde teria que aguardar por uma coluna da minha Companhia para me escoltar até ao destino dos meus próximos dois anos.

Nessa mesma noite, na companhia do alferes Martins, fomos beber umas cervejas enquanto ele me inteirava daquilo que me esperava. De repente um estrondo enorme, era o primeiro ataque de foguetões a Nova Lamego. Pela primeira vez, senti o verdadeiro sentido da guerra.

No dia seguinte lá chegou a coluna que me iria levar ao meu destino. Assustei-me ao vê-los chegar cobertos de pó, armados até aos dentes, embrulhados em mosquiteiros camuflados e no meio de uma algazarra constante, mas depois percebi que aquela euforia era porque eles vinham à cidade ver familiares e falar com as suas ‘bajudas'. Lá nos pusemos a caminho, onde, ao fim de 25 km, fui recebido por uma tabuleta com a inscrição ‘Termas de Canjadude', o que me levou a questionar se não se tinham enganado no caminho.

Os tempos seguintes foram de conhecimento do ambiente e dos usos e costumes. Hoje, sinto-me gratificado por ter aprendido tanto da vida em tão pouco tempo. Éramos uma família de cerca de trinta pessoas. Acho que fiquei um homem melhor.

Vivíamos o dia-a-dia sem projectos de futuro. Os dias iam correndo, uns melhores outros piores e outros sem classificação. Estes aconteciam quando tínhamos contacto directo com aquilo que não queríamos, a guerra.

Eram as minas, eram as emboscadas, eram os ataques ao aquartelamento e, aí sim, ficava sempre um rasto de tristeza e revolta porque às vezes se perdiam vidas e outras ficavam inapelavelmente afectadas. Mas as rotinas voltavam, como voltavam os jogos de futebol, as noites loucas no Chat Noir (uma espécie de pub que nós tínhamos construído e decorado). Era aí que nós consolidávamos a nossa união e a nossa amizade recorrendo a petiscos e a uns bons whiskies que por vezes faziam daquele espaço um improvisado dormitório.

No dia 31 de Março de 1972 regressei. Sem sequelas mas com uma revolta que questionava o porquê de tudo aquilo. Talvez o dia mais marcante deste percurso tenha sido o dia do meu embarque, o dia em que vi aquela figura pequena e aparentemente insensível chorar pela primeira vez... era o meu pai.

PERFIL

Nome: Germano Penha

Comissão: Guiné (1970/72)

Unidade: Companhia de Caçadores 5

Actualidade: Tem 62 anos e é bancário. Casado, tem uma filha com 31 anos e um neto com 1 mês
Por: Germano Penha, Guiné (1970/72)​
 

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“Fui castigado com cinco dias de detenção”

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No Pelundo, com o irmão Arménio, o amigo Rodrigo Borges (ainda hoje amigos e companheiros de caça),a ‘mascote’ Mussá Seidi e outro camarada, em Julho de 1972

Discordei de uma ordem mal dada por um oficial e cheguei a vias de facto. castigaram-me fazendo honras a Spínola – e senti-me honrado

Guardo na memória uma operação na região de Badã, na Guiné, a 4 de Março de 1972. Ao tomarmos de assalto um acampamento que, supostamente, seria depósito de armamento com destino à zona do Churo, já durante a acção de busca e recolha - e quando já estávamos a preparar toda a segurança para a retirada -, somos atacados, do outro lado, por tiros de Kalashnikov, lança-granadas, foguetes e morteiros. Do confronto resultaram dez feridos. Felizmente saí ileso. Valeu-nos a intervenção do apoio aéreo, quer na evacuação dos feridos - altura em que sofremos nova flagelação -, quer no que respeita a conter a acção inimiga no regresso ao aquartelamento, para que as repercussões não tivessem sido maiores.

ESCAPEI À EMBOSCADA

Tinha chegado à Guiné a 28 de Dezembro de 1971, para substituir um furriel miliciano falecido numa emboscada quando se preparava para vir de férias à Metrópole. Nunca confirmei este facto, pois entretanto fui requisitado para Jolmete, tendo assim ficado mais perto do meu irmão Arménio - também ele mobilizado um ano antes para este teatro de guerra.

Foi precisamente perto do aquartelamento de Jolmete que, a 20 de Abril de 1970, teve lugar o assassinato dos três majores e do alferes que estariam a negociar o fim das hostilidades no Chão Manjaco. Após o regresso do Batalhão à Metrópole, por ter terminado a comissão, sou colocado no Depósito de Adidos em Brá, onde permaneci mais um ano.

Para além do serviço na Secção de Justiça, como escrivão, tinha também periodicamente a missão de fazer de sargento de dia à Casa de Reclusão Militar. Um dia, no render da guarda, tinham desaparecido 12 reclusos, que, entretanto, estranhamente voltaram. Outro dia, desapareceram mais cinco. E voltaram a aparecer. Nunca cheguei a saber por onde os presos fugiam. Só sei que saíam para ir ao Pilão, a Bissau (às ‘meninas'). A partir desse dia combinei com um dos presos para fazer uma ‘escala de saída', com a condição de todos estarem presentes ao render da guarda. Nunca mais me faltou nenhum recluso.

Quando eu já estava a escassos três meses de acabar a minha comissão, por ter discordado de uma ordem mal dada por um oficial - o que mais tarde viria a ser confirmado - e, depois de ter chegado a vias de facto, fui castigado com cinco dias de detenção. Foi-me dito, na altura , pelo então comandante do Depósito de Adidos, que eu tinha razão, "mas que a democracia ainda não tinha chegado à tropa" e que a ordem de um superior, mesmo mal dada, era para ser sempre cumprida. Fui ainda castigado com a missão de fazer a guarda de honra ao general Spínola, na sua última deslocação a este aquartelamento - o que para mim foi uma honra.

Lembro-me que no final de 1973 era já grande a tensão que se vivia. Também me recordo de Bissau começar a ser cercada de arame farpado e da colocação de minas nalgumas zonas da periferia. Avisaram-nos, na mesma altura, da possibilidade de podermos sofrer um ataque aéreo. E tudo isto ditava que o fim estava próximo.

Regressei a Portugal no dia 22 de Dezembro de 1973, com 24 meses de comissão. Não posso considerar que a minha passagem pela Guiné tenha sido das piores. Passei por bons e maus momentos. E durante a guerra fiz amizades que perduram até aos dias de hoje, como é o caso do Rodrigo Borges, meu companheiro da caça há muitos anos.

PERFIL

Nome: Augusto Silva Santos

Comissão: Guiné (1971/73)

Força: B. Caç. 3833/C. Caç. 3306 e Depósito de Adidos/Brá

Actualidade: Vive em Almada, 60 anos, empresário reformado, casado, com duas filhas e uma neta
Por: Augusto Silva Santos, Guiné (1971/1973)​
 

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“Camarada afogado marcou comissão”

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Com conterrâneos e uma mascote, em Santo António do Zaire (sou o segundo à esq.)

Tivemos mais quatro mortes em acidentes de viação e outro num acidente com arma de fogo. Não registámos nenhuma baixa em combate.

A morte do escriturário Coelho, afogado numa praia perto de Santo António do Zaire, em dia de folga da companhia, foi o dia mais marcante da minha comissão de serviço, de dois anos, em Angola.

Natural de Monte Gordo, cedo aprendi a nadar. Pescador até ir para a tropa, sentia-me como um peixe na água. Deixar morrer um camarada, afogado, perto de mim, custou-me muito e ainda hoje não compreendi como tal foi possível.

Como era exímio nadador, estava com mais dois algarvios, ao largo, a nadar. Até parecia que estava nas cálidas águas de Monte Gordo. No final, quando regressávamos à margem, um camarada disse-nos que estava a sentir algo a bater-lhe nas pernas. Ajudamo-lo a puxar e, horrorizados, constatámos que era o corpo, sem vida, do soldado Coelho. Tinha-se afogado mesmo junto a nós. Foi um choque terrível.

Outros dias tristes de uma comissão que recordo com grande saudade foram as mortes, em acidentes de viação, de quatro soldados.

Mas a sexta baixa do Batalhão verificou-se num acidente caricato. Uma coluna deslocava-se na picada, numa patrulha de rotina. Subitamente, um soldado gritou, alertando para o facto de ter visto uma galinhola. O sargento fazia-se sempre acompanhar de uma caçadeira para estas eventualidades e, de pronto, mandou parar a viatura. Passou a arma, pronta a disparar, ao soldado e deu-lhe ordem de perseguição ao animal. O soldado – já não me lembro o seu nome – de imediato, de arma em punho, saltou da viatura, caindo numa vala, que não vira. Na queda, a arma disparou-se e atingiu-o. Teve morte imediata.

LONGE DO INIMIGO

Seis mortes num Batalhão que praticamente não deu um tiro em combate. Até parecia que o inimigo tinha medo de nós. Mandavam-nos para uma ‘zona de porrada’ e, logo que lá chegávamos, acabava a guer- ra. Saíamos de lá e voltava a haver barulho. Só agora percebi que a férrea disciplina imposta pelo tenente coronel Orlando da Silva Andrade e pelo capitão Eugénio Fernandes, que tanto criticávamos na altura, esteve na base deste sossego. O inimigo ‘cheirava’ a ‘bandalhice’ à distância e não atacava quem respeitava os procedimentos de segurança.

Praticamente sem guerra, o pior da minha comissão foi a falta de água e de alguma comida, na zona de Tomboco, Ambrizete e Santo António do Zaire.Na época da seca, tínhamos que ir aos charcos dos animais buscar água, que desinfectávamos. Não havia água para tomar banho e o pó da picada era retirado com um pincel. Como não havia electricidade, cerveja e refrigerantes só mornos. Um sacrifício que custou a passar.

Mas a época da chuva não era melhor. É certo que havia água para os banhos, mas, em contrapartida, as viaturas ficavam atoladas, o que nos dava um trabalhão para as desatolar.

Em 24 de Maio de 1969 deu--se o regresso do Batalhão a Portugal. Chegámos ao Regimento de Infantaria 16 em Évora, unidade mobilizadora, onde a família nos esperava com grande ansiedade.

Foi grande a alegria, vermos os nossos entes queridos e regressar ao meu Algarve. No entanto, confesso que hoje tenho saudades de Angola, que considero a minha segunda Pátria e onde gostaria de voltar, em férias, para recordar os bons e maus momentos ali vividos.

PERFIL

Nome: António Manuel Martins

Comissão: Angola (1967/69)

Actualidade: Aos 64 anos, é funcionário da Conserveira Ramires. Casado, tem dois filhos e quatro netos. Reside em Monte Gordo
Por: António Manuel Martins, Angola (1967-1969)​
 

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“Perdi a virgindade do fogo em Canjadude”

A minha guerra

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Vi lindas lavadeiras nuas, vi um povo e uma terra diferentes mas na minha memória vivem mais o fogo e a morte de um amigo meu

A 24 de Maio 1969, por volta do meio-dia, deixava o porto de Lisboa no ‘N/M Niassa', rumo à Guiné, como rendição individual. Lembro-me de ver familiares e amigos no cais. Choravam. Cada um expressava o desgosto com o sentimento de um gesto diferenciado. Interroguei-me: ‘será acertado empenhar-me na defesa da Pátria e da Bandeira? Têm razão os que desertam, como fizeram alguns lá da minha terra?' Confuso, olhava os rostos das pessoas que gostavam de mim.

Segui viagem. No aquartelamento dos Adidos, no dia 3 de Junho de 1969, informaram-me que tinha sido colocado na CCAÇ.5, uma companhia de africanos - os Gatos Pretos. Os da Metrópole eram pouco mais de 20. Estávamos todos sediados em Canjadude - Sector Leste - Nova Lamego.
Lavadeiras desnudas

Cheguei ao porto de Pidjiguiti em Bissau e só desembarquei dia 30. Levaram-me para o DGA, onde, logo que cheguei, quis o acaso que encontrasse um amigo. Tínhamos estudado juntos. Nesse dia deixei Bissau, estrada do rio Geba, rumo a Bambadinca numa LDG, onde iam militares e civis como sardinha em lata. Além da massa humana, havia muita mercadoria. Os civis carregavam de tudo: alfaias agrícolas, alimentos, pilões, gaiolas com galinhas e pintos, todo o tipo de animais - que confusão! - até cabras iam... Lembro-me das lavadeiras, mulheres agradáveis de se ver, algumas nuas. Uma delas, mais atrevida, vendo o nosso olhar aveludado de concupiscência, dirigiu-se assim ao meu amigo: ‘ bu mamé é p*, sinon bu cá tinha nascido'. [‘A tua mãe é p*, se não tu não tinhas nascido.']
A Canjadude, cheguei a dia 13 de Junho de 1969, na parte da tarde. Após o jantar, comunicaram-me que no dia seguinte, às 07h00, devia estar pronto para alinhar na operação a nível de companhia, ao Cheche. De transmissões iam o Silva, o Carvalho, que era o mais velho de transmissões, e eu, o mais novo, que para me familiarizar acompanharia o Carvalho.

Era norma que o ‘periquito chegado' pagasse umas cervejas aos camaradas da secção. Não fugi à regra. Mas não chegava. Estavam todos concertados. Queriam, amigavelmente, infernizar-me a vida. Às tantas, um deles sai-se com esta: ‘tu chegaste hoje, dia 13, sexta-feira, e amanhã vais logo para o Cheche, onde há quatro meses perderam a vida perto de meia centena de militares [na realidade foram 47]. Isto não é uma colónia de férias, para vires com gira-discos na bagagem. Isto aqui é a guerra, amigo! Não vais ter vida facilitada. Os graduados não são flor que se cheire'.

Debaixo de fogo

Eram 22h48 do dia 11 de Julho de 1969 quando se precipitou inusitado ribombar. Quando ouvi o primeiro estrondo quis-me convencer que fosse um trovão, mas em milésimos de segundo acordei para a realidade - era o meu baptismo de fogo. Perdia a virgindade no flagelo ao Aquartelamento de Canjadude. Saltei da cama para o chão, da parte superior do beliche, para tentar encontrar uma G3 - ainda não tinha arma distribuída. Nestas décimas de segundo o gerador de energia eléctrica foi-se abaixo e ficou tudo às escuras. Corro de mãos vazias pelo abrigo, saio e meto-me numa das valas. Cá fora, os rebentamentos eram constantes. Um ruído sibilino cruzava em todas as direcções. Estava amedrontado, confesso.

O pior momento da minha guerra foi durante o mês de Agosto de 1970. Perderam a vida dois camaradas, um dos quais o enfermeiro Dinis - meu amigo.
Regressei à Metrópole no dia 2 de Julho de 1971, no navio ‘Angra do Heroísmo'.

Comissão
Guiné (1969/71)

Força
Companhia de Caçadores nº 5

Actualidade
Em situação de pré-reforma; Casado;Tem três filhos e dois netosCorrigir
Por: José Manuel Silva Corceiro (depoimento recolhido por Maria Inês Almeida)​
 

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“Fui atingido a tiro na coxa. Tinha 19 anos”

A Minha Guerra

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Momento de pausa, durante uma refeição, com os camaradas pára-quedistas fuzileiros, os ‘parafusos’, no início de 99 dias de guerrilha.

Fiz a guerra duas vezes. Fui a atingido e voltei. Mas guardo também o adeus sentido da minha madrinha, depois companheira pela vida fora.

A chegada a Luanda foi a 30 de Setembro de 1963, depois de longos nove dias de viagem, marcados por um episódio que retrata a força que os homens podem ter. Houve um levantamento de rancho dos embarcados da Marinha. Éramos, quanto muito, quatro por cento do total dos militares embarcados. Mas a decisão estava tomada. No terceiro almoço da viagem, ninguém entre a marujada comeu.

Entre os Fuzileiros, não havia ninguém obrigado. Íamos de vontade para o Ultramar. Assim foi comigo, duas vezes. Na minha primeira comissão, a chegada a Luanda foi feita com enorme expectativa. Lembro-me da aproximação ao porto de Luanda e da minha sensação de bem-estar que fazia esquecer a aproximação da guerra.

Os primeiros dois meses foram de adaptação ao clima, com treinos intensivos. Depois demos um ‘salto’ ao Zaire e regressámos a Luanda para substituir outro Destacamento. Esta substituição trouxe-nos uma operação em que o grau de dificuldade residia na enorme falta de água – um cantil para dois dias e duas noites. Num charco, onde boiavam esqueletos de animais, procurou-se mitigar a sede.

Caí na primeira emboscada, na região dos Dembos, mata, a 28 de Maio de 1964. Tinha acabado de fazer 19 anos. Fui atingido por um tiro. Andava a passo lento pela picada, quando senti na coxa esquerda, um choque, depois o som do tiro seguido de rajadas. Era o primeiro fuzileiro ferido em combate na província de Angola.

MADRINHA

Na saída para a minha segunda comissão, quando o ‘Niassa’ navegava em direcção à barra, a estibordo vi um grande pano branco; desfraldado parecia que acenava. Era só para mim. Era a minha Madrinha de Guerra da primeira comissão, minha companheira depois pela vida.

O regresso da primeira estada na guerra teve início em Luanda, a 23 de Outubro, com chegada a Lisboa a 02 de Novembro de 1965, 25 meses depois de ter partido. A segunda etapa da minha guerra mediou entre o dia 08 de Junho de 1966 e 05 de Agosto de 1968, o que perfaz 47 meses em África. Tempo que hoje, apenas nos dá direito, a não sermos respeitados por aprendizes de feiticeiros, gente que não teve, não tem, respeito pelos ex-combatentes que tudo deram e nada pediram.

MARIA, UM DOS ‘NAMORICOS’

Quando as saudades de casa apertam e a memória dos que lá deixámos nos consome os dias, encontramos alegria e consolo em perfeitos desconhecidos. Os laços de amizade que a vida nos põe diante dos olhos dificilmente desaparece, mesmo quarenta anos depois do momento retratado nesta fotografia. Os namoricos, aqui representados pela Maria, foram passageiros, mas a amizade jamais perecerá.

PERFIL

Nome: Mário H. Manso

Comissão: Angola (1963/65 e 1966/68)

Actualidade: 65 anos, reformado. É casado e tem uma filha
Por: Mário H. Manso, Angola (1963-1965 e 1966-1968)​
 

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Na guerra, os sobressaltos eram constantes

A minha guerra

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A chegada da companhia à zona de Tomboco

Ainda hoje lembro as palavras do capitão Eugénio Fernandes, que dizia constantemente: “atenção! o perigo está sempre à espreita”

Embarcámos em Lisboa a 18 de Fevereiro de 1967, no paquete ‘Vera Cruz’, e chegámos a Luanda no dia 27 do mesmo mês, data que nunca esquecerei. Ainda estávamos a formar batalhão, no campo militar de Santa Margarida, quando se ouviu comentar: "vamos para a Guiné ou Angola?".

As ordens superiores eram de desembarque no cais em Luanda e o destino era o campo militar do Grafanil. Quando cheguei ao campo militar pensei em milhões de coisas: na família, nos amigos, no que é que me poderia acontecer… fiquei realmente muito emocionado ao ver tanta gente, uns a chegar, outros a partir para a Metrópole.

Passámos por algumas zonas consideradas de guerra, locais onde os cruzamentos eram bastante perigosos, e que faziam ligação com a picada que seguia para Bessa Monteiro, até chegarmos a Tomboco.

Quando lá chegámos, toda a população nos saudou. Fiquei muito emocionado ao ver imensa gente nas sanzalas a precisar da ajuda e segurança dos militares. Muitos camaradas diziam que eu era um privilegiado pelo lugar que ocupava, era 1º cabo amanuense, mas não era fácil a tarefa de secretário. Pela função que desempenhava e pela zona onde me encontrava, a guerra passou-me um pouco ao lado, mas os sobressaltos eram constantes. Fiz parte de saídas em colunas militares, para irmos fazer reconhecimentos, buscar materiais e produtos alimentares, ao passar por zonas de risco. Ainda hoje lembro as palavras do capitão Eugénio Fernandes, que dizia constantemente: "atenção! O perigo está sempre à espreita!".

Os conselhos nunca eram demais. A grande experiência e disciplina dos nossos superiores evitaram outros acontecimentos, mas mesmo assim faleceram alguns camaradas em acidentes, um deles era colega do meu curso. Esse camarada morreu afogado e o que me causa mais tristeza é que também eu estava a nadar mas quando cheguei ao sítio onde ele se encontrava, já tinha falecido.

ZONA DE GUERRA

Cheguei ao cais de Alcântara, Lisboa, no dia 3 de Junho de 1969. Foram quase dois anos e meio em Angola. Quando partimos de Luanda para a Metrópole, apenas deixámos para trás a terra – Angola. Porque nunca na vida vamos esquecer aqueles dias e os seus acontecimentos tão marcantes. Ainda hoje o Batalhão de Caçadores 1903 recorda esse tempo quando nos juntamos, de dois em dois anos, para confraternização nos almoços que se fazem.

Para mim, o dia mais marcante foi a mudança de aquartelamento de Tomboco para Santo António do Zaire, nos primeiros dias de 1968, na zona fronteiriça com o Congo Belga. Recordo-me que estávamos há poucos dias em Tomboco, em grupo na parada do aquartelamento, quando caíram três granadas perto de nós. Felizmente a pessoa não deveria ter muita experiência porque elas caíram com as cavilhas postas. Nada aconteceu, foi só o susto.

Para além das funções da minha especialidade de 1º cabo amanuense, praticava um pouco de desporto, futebol de 11 e futebol de 5 (salão), uma maneira de ajudar a passar o tempo. Ajudava os meus camaradas, na messe de oficiais, o cozinheiro Custódio e também os auxiliares. Existia um verdadeiro espírito de companheirismo, união e também preocupação entre todos. A moral desta história, uma das que tirei, é que de facto existia uma verdadeira relação de irmãos entre os companheiros mais próximos, tal como uma família.

PERFIL

Nome: Júlio de Brito

Comissão: Guiné (1967/1969)

Força: Batalhão de Caçadores 1903

Actualidade: Assistente administrativo de 1ª de contabilidade. Casado, tem dois filhos e uma neta

Por:Júlio de Brito, Guiné (1967/1969)​
 

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Estive 22 vezes debaixo de fogo

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Em Jolmete, a fazer pose para a fotografia antes de recolher os materiais para construção de abrigos. O material é pesado e iam muitos para empurrar

Entregues a nós próprios, começámos a fazer a nossa guerra. Evitámos flagelações ao quartel mas as emboscadas no mato eram constantes.

Embarquei para a Guiné a 7 de Maio de 1969, no paquete ‘Niassa’, onde cheguei a dia 12 do mesmo mês. Fomos informados pelo governador e comandante-chefe, sr. general Spínola, que a responsabilidade da nossa Companhia iria ser muito grande, pois íamos substituir uma das melhores Companhias Operacionais da Guiné (a acção psicológica já a funcionar).

Chegámos na altura da transição do tempo seco para a época das chuvas. A nível operacional, nos dez dias de sobreposição de companhias, tudo correu bem. Saíamos em patrulhamentos com os grupos de combate da companhia cessante, mas não íamos para zonas perigosas. O interesse da 2366 era passar o testemunho da melhor maneira possível, sem correr grandes riscos, pois a ‘peluda’ estava próxima.

No dia em que a Companhia cessante se foi embora começaram os nossos problemas, com dois mortos e vários feridos – não em combate, mas por acidente com arma de fogo. Ao chegarmos ao quartel, depois da operação de segurança e protecção à coluna auto que levou a 2366 para o Pelundo, o soldado que transportava a bazuca, ao retirar a granada da arma, talvez por deficiência da mola ou por descuido, ela caiu pelo tubo, explodindo ao tocar no chão. Este foi o primeiro contacto com a triste realidade das mortes e evacuações.

A partir deste dia, entregues a nós próprios, começámos a fazer a nossa guerra. Saídas diárias evitaram flagelações ao quartel, que nunca tivemos, todavia as emboscadas no mato eram constantes. Em 21 meses de mato a Companhia esteve 28 vezes debaixo de fogo, e eu com o meu grupo de combate estive 22. Lembro como se fosse hoje a primeira emboscada a sério em que caímos. Foi a 22 de Julho de 1969. Tivemos dois mortos e vários feridos por tiro de RPG 2 e respectivos estilhaços.

HOMENAGEM

Tenho o dever de salientar o contributo dos soldados africanos do Pelotão de Caçadores Nativos nº 59, comandado inicialmente pelo colega alferes Mosca, e pela secção de milícias, comandada pelo chefe da milícia, o célebre ‘Dandi’, mais tarde promovido a capitão de milícia pelo sr. General Spínola. O ‘Dandi’ conhecia como ninguém todos os recantos da mata. Bom guerrilheiro, muito nos ajudou a evitar cair em emboscadas, abrindo trilhos novos na mata. Quando saíamos para o mato com ele, ninguém tinha medo, por mais difícil que fosse a missão. Mais tarde fez parte do rol dos fuzilados.

O dia que mais me marcou, e que o fez profundamente, foi a morte dos oficiais do CAOP, os três majores e do meu colega alferes Mosca (além dos outros três nativos) no dia 20 de Abril de 1970, em prol da paz e do entendimento dos povos do ‘Chão Manjaco’. Perdemos ali, de uma só vez, um conjunto de oficiais único e inigualável. As tréguas que existiam acabaram nesse dia. Nos meses que se seguiram até ao fim de 1970 tivemos uma actividade operacional muito intensa. Felizmente sem baixas.

Embarcámos no ‘Uíge’ a 26 de Fevereiro, tendo chegado ao cais de Alcântara em 2 de Março de 1971. Era costume o sr. General Spínola convidar para um jantar de despedida com bate-papo os comandantes de Companhia (capitães) e um dos alferes de cada companhia antes do embarque de regresso. O sr. General fez questão de convidar todos os alferes além do capitão, como recompensa pela actividade desenvolvida. Nessa altura já o sr. general dizia que a Guiné não tinha solução pela guerra. Manifestava ideias que mais tarde veio a publicar no seu livro ‘Portugal e o Futuro’.

PERFIL

Nome: Manuel Resende

Comissão: Guiné (1969/1971)

Força: Companhia de Caçadores 2585

Actualidade: 63 anos, reformado. Casado, com uma filha
Por:Manuel Resende, Guiné (1969-1971​
 

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Eram secretos e gravados pelo Spínola

A Minha Guerra

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Parada militar em Tavira, 1970, onde Jorge Ganhão fez a instrução militar

Estive nas informações. Tinha 20 anos. Foi no quartel de Amura. Nas minhas mãos tive documentos secretos. Falei com militares de Abril

Fui mobilizado, como furriel miliciano, para a Guiné-Bissau no cumprimento de uma comissão militar, entre 13 de Julho de 1970 e 18 de Agosto de 1972. Viajei no barco ‘Alfredo da Silva’. Tinha 20 anos, estava a entrar num continente que desconhecia, numa província ultramarina tida como o pior ‘teatro’ de guerrilha e, para agravar, com o pior clima.

Encaminharam-me para a minha nova morada nas instalações para sargentos no quartel-general, que eram dois quartos, cada um com quatro camas. Pensei: ‘Eu não vou ficar aqui!’ Falei com um colega açoreano de quem me tornei amigo, o Jorge do Nascimento Medeiros Cabral, que infelizmente nos deixou este ano, e um mês depois já estávamos a viver no centro de Bissau. Primeiro, num anexo e depois numa vivenda alugada a uma família cabo-verdiana.

Fomos colocados no quartel de Amura – eu, na repartição de Informações, o Cabral na repartição de Operações, cujo chefe militar era o tenente-coronel Firmino Miguel.

Foi neste aquartelamento que convivi de perto com os chamados militares de Abril – major Fabião, capitão Otelo Saraiva de Carvalho, major Almeida Bruno, general Spínola e outros.

Em 1970, com 20 anos, entrei no centro de uma guerra colonial e com a responsabilidade de contactar com todo o tipo de documentos, confidenciais e secretos. Tornei-me tradutor das Agências Internacionais de Informação (Reuters, France Press, Argélia Press Service, etc.). Transcrevia documentos do general Spínola para a Defesa Nacional, que me eram enviados do Palácio do Governador e entregues pessoalmente pelo chefe da minha repartição, o major Beja da Costa. Tinham a classificação de secretos e eram gravados pelo próprio Spínola em fita magnética.

CANTIGAS DA GUERRA

Já na Metrópole tinha tido uma actividade amadora nas cantigas. Por isso, foi fácil arranjar colegas, alguns já profissionais, para formar um grupo musical. Dele faziam parte, além de mim (cantor principal e viola), o Salvado, o Vítor Raposeiro, o Dany Silva, o Carlos ‘Brasileiro’, o Vítor Barros, o Luís Alberto Bettencourt e outros que apareciam de vez em quando.

Eu, o Luís Bettencourt e o Jorge Cabral fizemos até um programa de rádio (‘Dimensão 3’) transmitido pela Emissora Nacional nas suas instalações de Bissau. Cantei com o Bettencourt para os nossos militares que estavam no ‘mato’, através dos microfones do PFA (Programa das Forças Armadas), onde eram militares/locutores o João Paulo Diniz e o Armando Carvalheda.

Estive ainda como cantor com os músicos – o Vilas Boas, o Salvado, o Jorge e o Carlos ‘Brasileiro’ – na única boîte de Bissau, o Gato Negro.

Foi na minha comissão militar que aconteceu o célebre ataque à Guiné-Conakry. Acontecimento ainda hoje controverso e mal explicado. Li o relatório oficial que foi dactilografado pelo meu amigo Jorge Cabral. O que li e depois o que confirmei com fuzileiros e outros militares que fizeram parte daquele histórico acontecimento foram suficientes para afirmar que o que tem sido contado é apenas parte da verdade.

Voltei para a Metrópole no dia 18 de Agosto de 1972. Aprendi a gostar daquele povo, bom e generoso. Guardo ainda alguns aerogramas e cartas do meu camarada amigo guineense, condecorado com uma Cruz de Guerra, o soldado Luís Mãe de Água.

PERFIL

Nome: Jorge Ganhão

Comissão: Guiné-Bissau (1970/72)

Força: Repartição de Informações

Actualidade: Compositor e intérprete. Tem quatro CD gravados. É músico do Paco Bandeira há, aproximadamente, 15 anos
Por: Jorge Ganhão, Guiné-Bissau (1970-1972)​
 

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Voltei a Portugal no dia dos meus anos

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O pelotão em formatura para seguir para operação de reconhecimento de oito dias no mato

Foi a melhor prenda da minha vida. A comissão foi feita com a força dos braços mas sem sangue e com saudades de uma certa miúda

Uma semana depois da morte da minha mãe, no dia 20 de Setembro de 1970, fui para França com o intuito de escapar à tropa. Mas as saudades do meu País e de uma certa miúda, de seu nome Maria Generosa, que viria a ser minha esposa, fizeram com que eu regressasse no final de 1971. Como já me devia ter apresentado, tive de requerer a anulação da nota de faltoso.

Em Agosto de 1972 assentei praça no RI 6, em Leiria, para fazer os testes psicotécnicos no curso de sargentos milicianos, que concluí com sucesso. Fui enviado para a Escola Prática de Cavalaria de Santarém onde fiz a recruta, para a Escola de Operações Especiais em Penude, Lamego – curso de Rangers – e depois para o campo militar de Santa Margarida para formar companhia e assim aguardar mobilização para o Ultramar.

Fui integrado na Companhia de Cavalaria 8453. Tinha prometido a mim mesmo que se fosse para o Ultramar não queria partir deixando compromissos para trás. Não queria ser estorvo para mulher nenhuma se me acontecesse alguma fatalidade. Inventei uma zanga, cortei relações, mas deixei um amigo alerta – ele devia manter-me informado. Um ano depois de estar em Angola recebi um aerograma dele – dizia que alguém andava a fazer a corte à minha Maria Generosa. Por isso, escrevi-lhe a dar notícias. Disse-lhe que estava bem, que estava tudo a correr bem.

OS DIAS DA COMISSÃO

Desembarcámos no aeroporto de Luanda. A viagem até ao Grafais, cerca de 15 km, foi feita em camiões militares, onde nos foi distribuído o material necessário à deslocação até ao Norte, onde assentámos arraiais no quartel da Manhosa. Tínhamos um outro aquartelamento, chamado Luvo, sob a nossa responsabilidade, que se situava a cerca de 8 km a norte, junto à fronteira da República do Zaire. Ali fazíamos a defesa com um pelotão em sistema rotativo. Tínhamos a ajuda de um pelotão de uma companhia vizinha que estava situada a cerca de 30 km.

Os nossos dias eram passados entre os trabalhos de manutenção das instalações e das valas de refúgio. O meu pelotão foi o primeiro a ser destacado para o Luvo. Recordo-me da primeira vez que saímos para ir buscar lenha – ficámos atolados com uma viatura berliet e tivemos de ali passar a noite, num acampamento improvisado. Quando a chuva parou, fomos barbaramente atacados por mosquitos.

Nunca nenhum de nós sofreu qualquer ferimento grave. O grande ‘sofrimento’ da minha comissão não tem sangue a lamentar. Tempos houve em que às nossas barrigas só chegava atum enlatado. A coluna de abastecimento de géneros secos, M.V.L. (Movimento de Viaturas Logístico), fora atacada por terroristas e em Luanda reorganizava-se.

Uma das nossas maiores alegrias era a chegada do correio, uma vez por semana. Quando não tínhamos correspondência era notório o desânimo. Por isso a importância das madrinhas de guerra – as suas palavras eram conforto em território distante. Mantive em permanência 14 madrinhas, que me respondiam regularmente.

A nossa vida militar integrava operações de reconhecimento periódicas que, por vezes, se estendiam até dez dias fora do quartel. A nossa missão terminou em Janeiro de 1975. Ainda fiquei em Angola mais alguns dias para enviar toda a bagagem da companhia. Nesse ano tive a melhor prenda de aniversário de sempre. Embarquei dia 8 de Fevereiro à 01h30 no Boeing 747, baptizado com o nome ‘Luís de Camões’. Voltava a Portugal no dia dos meus anos. Em Agosto casei com a mulher que deixara para trás, Maria Generosa.

PERFIL

Nome: Alfredo Marques Rodrigues

Comissão: Angola, 1973/75

Força: Forças Especiais

Actualidade:
59 anos e vive em Esmoriz. Tem dois filhos e dois netos. Foi mecânico de aviões e neste momento é industrial
Por: Alfredo Marques Rodrigues, Angola (1973-1975)​
 

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A bagagem tinha dois caixotes com 100 kg

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Recepção aos ‘piriquitos’ pelo comandante-chefe, general Spínola

Conheci a Guiné carregado com o sonho. Era furriel miliciano foto-cine e projectava filmes até para quem nunca tinha visto nada assim.

Estive no o C.T.I. Guiné como furriel miliciano Foto-Cine (Fotografia e Cinema), integrado no Destacamento de Fotografia e Cinema nº 3101, talvez o único naquele teatro de guerra composto, exclusivamente, por milicianos.

A viagem que me levou até à África Equatorial iniciou-se no aeroporto de Figo Maduro, em Lisboa, num dia chuvoso de Janeiro do já longínquo ano de 1972. Depois de oito horas de voo chegámos a Bissalanca, onde nos esperava muita ‘tropa macaca’.

SESSÕES DE CINEMA

Conheci todo o território da Guiné, terra tão castanha. Conheci muitos aquartelamentos e em cada um deles muitos mais camaradas. Ficava em média quatro dias num sítio. Tinha por missão projectar filmes para a tropa e para a população convidada pelo comando militar local. O dia era maior quando eu chegava; quando chegava o cinema. Lembro-me de gente embasbacada com a máquina de projecção. E eu, mestre daquele gingarelho, era uma espécie de feiticeiro, mágico, eu sei lá.

A minha guerra começou oito dias depois de ter chegado a África. Tinha então sido destacado para projectar filmes no sector de Bafatá, cidade no interior, a norte de Bissau. Apanhei a LDG [barco de carga] até ao Xime. Lá estava organizada uma coluna onde seguiam militares e passageiros para Bafatá. A minha bagagem era composta por dois caixotes com cerca de 100 quilos, que continham máquina de projectar, transformador de corrente, coluna de som, gambiarra com muitos metros, bobinas, etc.

Em Bafatá, o comandante do batalhão fez um croqui dos locais onde deveria ir. Foram muitos os aquartelamentos que visitei. Tive oportunidade de sentir o quão difícil era para as NT (Nossas Tropas) permanecerem naqueles locais meses a fio, perseguidos pelo espectro do perigo.

De regresso a Bissau, também de LDG – onde tive direito a 20 dias de descanso – resolvi gravar para os meus pais e irmão uma grande fita magnética, com música, conversa, sessões de teatro, poesia com rima duvidosa e textos publicados na revista ‘Vida Mundial’ sobre diálogos na assembleia nacional. Na empreitada valeram-me os meus colegas de quarto.

Lembro-me também de ir a Bolama de helicóptero, para fazer a reportagem da recepção de ‘piriquitos’ [soldados recém-chegados] e do ‘velho’ – alcunha que era dispensada ao general Spínola.

EXPLOSÃO AO JANTAR

Fui para Farim em coluna, numa viatura. À chegada esperava-me uma belíssima recepção – o batalhão comemorava um ano de comissão e toda a tropa tinha direito a uma bazuca [nome dado a uma cerveja maior do que o habitual]. Mas aos microfones da rádio clandestina, a ‘Maria Turra’ tinha prometido que havia de se associar à festa portuguesa. E cumpriu. Quando a tropa jantava houve uma enorme explosão. Só no dia seguinte soubemos o que tinha contecido. Três mísseis, lançados em simultâneo de diferentes locais, tinham sobrevoado o quartel e a sede do batalhão. E caído a 3 km do alvo.

Regressei no dia 10 de Outubro de 1973. De dois em dois meses, um grupo de camaradas do Destacamento de Fotografia e Cinema nº 3101 do Comando Territorial Independente da Guiné reúne-se numa almoçarada. Não sei explicar a força deste ‘cimento’ que nos mantém ligados tantos anos depois. Mas dou-lhe um nome: amizade.

PERFIL

Nome: José Manuel Rodrigues

Comissão: Guiné, 1972/1973

Força: Destacamento de Fotografia e Cinema nº 3101

Actualidade: Aposentado da função pública, colabora numa instituição sem fins lucrativos. É coralista no Coro Lopes-Graça da Academia de Amadores de Música
Por: José Manuel Rodrigues, Guiné (1972-1973)​
 

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Só a mão de Deus para acabar tudo bem

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Fui, provavelmente, o primeiro oficial do Exército Português a receber, num aquartelamento no Norte de Angola, altas patentes da FNLA

Estou orgulhoso por ter servido a pátria nos melhores anos da minha juventude. Feliz por ter lutado ao lado de portugueses corajosos

A 24 de Abril de 72, passei dos bancos calmos do liceu, em Torres Vedras, para as carreiras de tiro da Escola Prática de Infantaria, em Mafra. Recordo que 16 meses depois, a 28 de Agosto, às 23h, a Companhia de Cavalaria 8453, Os Felinos, partia para Angola a bordo dum 707 da FAP. Eu ia a bordo. Chegámos no dia seguinte, às 9h. Luanda era uma cidade excitante, que fervilhava de progresso e de bem-estar.

Não fossem os helicópteros a sobrevoar aquela pérola africana num vaivém frenético, para transportar os feridos e os mortos vindos das matas no norte ou das savanas a leste, poderíamos pensar que estávamos numa das melhores e maiores cidades europeias.

Fomos colocados na fronteira Norte, em S. Salvador, mais propriamente na fazenda Mamarrosa. O meu capitão Castro pôs-me no posto fronteiriço do Luvo, a 10 km da sede da companhia. Se já estava em sobressalto, ainda mais fiquei pois ia ficar sozinho a comandar um aquartelamento. Logo na segunda noite viam-se luzes ao longe e pensámos que íamos ser atacados. O resto da noite foi passada nas valas.

Foi assim na noite a seguir, até que, à terceira, parecia que daquela é que não escapávamos. Depois das habituais luzes ao longe, um sentinela vem de olhos esbugalhados a correr até mim: "meu alferes" – gritou. "Hoje é que é. As luzes estão mais perto e ouvi o campim a mexer". Nova ida para as valas.

Ouve-se um rebentamento de uma armadilha que eu havia montado. Mandei disparar o canhão sem recuo e umas morteiradas para os alvos. As luzes apagaram-se momentaneamente e alguns minutos depois voltaram.

Então pensei que se eu fosse atacar, nunca iria de luz na mão. No outro dia fomos aos locais das luzes e da explosão e constatámos o que eu previa: as luzes eram apenas troncos de árvores incandescentes, das inúmeras queimadas que os turras faziam. E tinha sido uma bela pacaça [búfalo] que accionou uma das armadilhas e quis dar-nos o prazer de saborear durante alguns dias a sua bela carne.

GUERRA URBANA

No final de Outubro fomos transferidos para Luanda. Das frias e quase impenetráveis matas do Norte fomos para a guerrilha urbana – 24 horas de serviço e 24 horas de boa vida. Fazíamos protecção ao aeroporto, às antenas da Marconi e junto aos bairros populares.

Às vezes, os momentos eram tão tensos e perigosos que só a mão de Deus fazia com que acabassem bem.

Hoje recordo aqueles homens que tive o privilégio de ter tido comigo, não como subordinados mas sim como verdadeiros irmãos e amigos. Sinto-me orgulhoso por nos melhores anos da minha juventude ter combatido pela pátria. Não fugi nem fui cobarde como alguns, que hoje são os "heróis" com chorudas reformas. Sinto que tentei evitar o desmembramento daquela que poderia ser hoje uma das maiores nações mundiais. E, acima de tudo, porque aqueles rios de sangue de crianças, mulheres, jovens e velhos que, no início da guerra pereceram às mãos criminosas daqueles sanguinários, eram portugueses.

PERFIL

Nome: António Ribeiro Mucharreira

Comissão: Angola (1972/75)

Força: Batalhão – Companhia de Cavalaria 8453

Actualidade: 57 anos, vendedor, agente comercial, casado e com dois filhos
Por: António Ribeiro Mucharreira, Angola (1972-1975)​
 

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“Entrámos num inferno de fogo cruzado”

A Minha Guerra

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Viagem de Cabinda para Teixeira de Sousa com destino a Massabi, onde estivemos três meses

Queima a minha memória a luta que travámos nos Dembos contra a mata cerrada e o inimigo. Salvámos uma menina barbaramente atacada

Cumpri dois anos de serviço em Angola, entre 1965 e 1967, no Destacamento nº 2 de fuzileiros especiais. Fiz dezenas de operações apeadas e helitransportado no norte e no leste, patrulhei os canais do rio Zaire até Nóqui e as lagoas de Cabinda/Massabi até ao Congo. Vou contar apenas um dos episódios que ainda queima a minha memória.

Foi no norte, em pleno coração dos Dembos, a umas dezenas de quilómetros da fazenda Maria Fernanda, região de mata cerrada onde o sol não espreita. Nesta escuridão, progredindo em passo de caracol, 70 fuzileiros e um pára-quedista tinham como objectivo um santuário do MPLA. Era manhã cedo e descíamos com os corpos encharcados uma pequena encosta, quando o nº 1 da coluna viu ramos de palmeira cortados de fresco.

De seguida avistámos um fumo claro entre as árvores. Em passo curto e com distância maior entre homens entrámos numa lavra de mandioca. O primeiro homem a sair da lavra deparou-se com uma cubata. Os últimos, que ainda não tinham atravessado, abriram fogo de rajadas curtas para alvos que fugiam na mata.

Continuámos. Encontrámos uma menina com uns cinco, sete anos, nua, com uma perna cortada pelo joelho. Não chorava, não gritava. O enfermeiro fez os primeiros-socorros; um dos fuzileiros tirou as cuecas para tapar o corpo da menina que repetia: "MPLA, MPLA, MPLA". Continuámos até uma clareira onde um helicóptero resgatou a menina.

Eram 15h30 quando o destacamento trocou de posições de equipas. Prosseguimos pela mata cerrada, mãos cravadas nos fustes das armas, o dedo no gatilho. Eu ia à frente. Ante dois trilhos, virámos no da esquerda e, cinco metros mais adiante, entrámos num inferno de fogo cruzado. Respondemos para conseguirmos evacuar os nossos feridos. O destacamento recuou para pernoitar mas o inimigo não desistiu - montou-nos emboscada. Valeram-nos os aviões da Força Aérea que metralharam a área. Tive sorte e escapei ileso mas três da minha equipa ficaram marcados para o resto da vida.

AINDA FUI MOBILIZADO PARA A GUINÉ

Das imagens que a película fotográfica documentou ressalvo aquelas em que a camaradagem era vínculo mais forte do que a guerra. A fotografia ao lado, de 22 de Setembro de 1965, foi tirada depois de uma caçada. Já na Metrópole, lembro a vontade de passar à vida civil. Em 1969 tirei o curso de mergulhador sapador da Marinha mas em 1970 fui mobilizado para a Guiné. Saudades de tudo isto? Nenhumas.

PERFIL

Nome: Afonso M. S. Brandão

Comissão: Angola, 1965/67

Actualidade: 63 anos, casado, um filho e dois netos. Residente em Corroios, Seixal. Reformado da Marinha
Por:Afonso M. S. Brandão, Angola (1965-1967)​
 

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“Fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre!”

A minha guerra

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A passar revista às tropas na festa do Rei dos Mares, enquanto passaram a linha do Equador, a bordo do navio ‘Vera Cruz’, a caminho de Moçambique

Estive 94 meses em campanha, em Angola, Guiné e Moçambique. Fui ferido por estilhaços de morteiro. Vinte dias depois voltei ao activo

Entrei para a Armada em 26 de Março de 1960. Depois de ter frequentado o curso de Manobra a bordo do navio-escola ‘Sagres’, fui como voluntário para o 2º Curso de Fuzileiros Especiais, que terminei em Setembro de 1961. Em Novembro desse ano iniciei a minha primeira comissão – Angola. Integrei o 1º Destacamento de Fuzileiros Especiais. Ficámos acantonados em Santo António do Zaire, no Norte do país.

Num fim de tarde, no enclave de Cabinda, enquanto patrulhávamos o rio Chiluango, na fronteira com o Congo, tivemos uma avaria no motor da lancha. Ficamos à deriva. Aquela era uma zona de contenção, o simples exibir de armas era o suficiente para o ataque do inimigo. Com sete homens apenas, não tivemos outra hipótese – ficámos na lancha sem desembarcar. Nove horas depois fomos resgatados por um pelotão do Exército Português de nativos.

FERIDO

Em Julho de 1963 regressei à Metrópole. Em Fevereiro do ano seguinte fui mobilizado para a Guiné integrando o Destacamento Nº 9 de Fuzileiros Especiais. Foi então que senti o peso da guerra. Das 43 operações em que participei, só em duas estive longe do inimigo. Numa delas fui ferido por estilhaços de morteiro e sujeito a intervenção cirúrgica para extracção de esti-lhaços no pescoço, no Hospital Militar de Bissau. Vinte dias depois voltei ao activo.

Em 1966 regressei a bordo da fragata ‘NRP Diogo Gome’s, depois de 24 meses de Comissão de Serviço. No mesmo ano frequentei o curso de Sargentos e em 1968 fui mobilizado para Moçambique, desta feita para a 4ª Companhia de Fuzileiros. Estive em Lourenço Marques 12 meses e outros doze no lago do Niassa. Em Lourenço Marques fazíamos a segurança das instalações da Marinha. No lago do Niassa chefiava uma patrulha de 26 homens. Fazíamos a segurança de toda a Base Naval de Metangula. Numa dessas tivemos de madrugada um frente-a-frente para o qual não tínhamos sido preparados – em vez do inimigo, dois leões.

Regressei em 1970, depois de mais 24 meses de comissão, a bordo do navio ‘Vera Cruz’. Em 1972 voltei a Moçambique. Em Nampula fiz uma comissão de oito meses, como chefe de secção dos Fuzileiros. Fazíamos segurança às instalações do Estado Maior da Armada. Em Setembro de 1972 regressei à Base Naval de Metangula, no lago do Niassa, para mais uma comissão de 16 meses. Fazíamos a segurança da base até ao posto avançado de Cobue, onde se mantinha um destacamento de Fuzileiros Especiais e um pelotão da Companhia de Fuzileiros. Era desse posto que partiam operações e patrulhamentos de toda a zona Norte do lago até à fronteira com a Tanzânia e Malawi.

Em Janeiro de 1974 regressei definitivamente à Metrópole. Ao todo estive 94 meses em campanha, pelos quais recebi entre outras, a Cruz de Guer-ra, a Medalha de Mérito Militar e dois louvores individuais pelo desempenho em duas missões no lago do Niassa.

Depois de 32 anos de serviço efectivo, terminei a minha carreira militar. Passei à reserva em 1992 no posto de Sargento Mor Fuzileiro. Termino com um dos gritos dos Fuzileiros: "Fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre".

PERFIL

Nome: José Coelho Coisinhas

Comissão: Novembro de 1961 a Janeiro de 1974

Força: Fuzileiros

Actualidade: Mora em Moura. Tem 70 anos, é casado. Tem dois filhos e três netos
Por:José Coelho Coisinhas, Angola, Guiné e Moçambique (1961-1974)​
 
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