“Não quis reviver dor do adeus à família"
A Minha Guerra: Último a ir para Angola
No Piri, ao fim da tarde, junto à Casa do Administrador
Partida. Os meus cinco camaradas gritaram de alegria por já não caberem no navio, mas eu insisti para ir. Evitei ter de me despedir duas vezes.
Estávamos a 14 de Dezembro de 1971. O gigante dos mares ‘Vera Cruz’ foi engolindo todo o batalhão até não poder mais. Sobrámos seis criaturas desprotegidas e tristes, logo após se ter verificado a sobrelotação do barco. "Vocês já não cabem!" – gritou-nos o capitão. "Como só volta a haver transporte no dia 8 de Janeiro, ides todos passar o NAtal e o Ano Novo a casa". Gritaram de alegria os meus cinco camaradas. Eu enfrentei o capitão e disse-lhe: "Encaixe-me num buraco qualquer. Não quero voltar a reviver de novo a dilacerante dor do adeus à família". E, como estava tudo cheio, escapei à degradante 3ª classe e fui encafuado num camarote de 2ª.
Durante a viagem houve quem chorasse desesperadamente. Eu preferi arquitectar sonhos, ao ritmo da frenética dança dos peixes voadores. Quando chegámos a Luanda, fui enviado para a povoação de Piri, no Norte, algures entre o Caxito e Quibaxe. Na manhã da partida para o mato acenámos um último adeus à belíssima capital do território e, envoltos num espesso e tórrido ar de estufa, rumámos, integrados na coluna militar, ao Norte, a Dange, a Dembos, paredes-meias com a famigerada Pedra Verde. Estrada fora, a fita negra e estreita de alcatrão, praticamente oculta pelas marés alterosas do capim que das bermas fustigava as viaturas, estendia-se à nossa frente em requebros sinuosos e difíceis de trilhar.
Finalmente surgiu, à esquerda, na companhia de um vigoroso bananal, o "comércio" do sr. Dinis, um transmontano robusto, mas anafado, radicado em África há já alguns anos, com mulher e filhos, cujo bacalhau assado na brasa fazia as delícias de quem por ali tinha de passar e parar, em mais um compasso de espera de uma das duas colunas militares diárias, entre Carmona e São Paulo de Luanda e vice-versa. No planalto do Piri tudo é silêncio, enganador! Só o esvoaçar despreocupado de algumas centenas de pássaros negros, semelhantes a corvos, entretidos com a filharada no primeiro andar das palmeiras que ornam as margens do rio, quebra, de quando em vez, a intrigante monotonia do ambiente. Não se vêem pessoas.
Para Sul, paredes-meias com o quartel da tropa, abriga-se a população autóctone sob a estratégica protecção do Exército. É a chamada sanzala da paz, onde não faltam as bem cultivadas lavras, a garantir ao povo os típicos alimentos de primeira necessidade. É neste ambiente sedutor, de magia indizível, mas de estranha e indisfarçável conflitualidade latente, que o Sol, de forma inapelável, vem gritar a vida todas as manhãs, por detrás do arvoredo cerrado, não tardando em dardejar quente e prateado, depressa subindo na vertical, para ser tórrido, escaldante, devorador.
Eu pesava 52 quilos. Quando saía para o mato com o rádio às costas, um Racal TR 28 (30 quilos), a G3 e a Walter (4 quilos), o saco da tenda (5 quilos) e o saco com as rações de combate para quatro dias (12 quilos), quase que duplicava o peso. E então se chovesse ou se tivéssemos de atravessar um rio a vau, muito pior. Nas encostas e nas montanhas era empurrado pelos camaradas mais solidários. O alferes fazia vista grossa. Fomos atacados várias vezes, do lado de fora do arame farpado, sempre de noite.
No dia seguinte podiam ver-se os cadáveres cobertos de moscas, jazendo por entre o palmeiral do lado Sul, em resultado das bazucadas com que lhes respondíamos. Não escapámos ilesos: durante o meu mês de férias, dois camaradas foram ceifados na flor da vida. Podia ter sido pior. Além de Piri, estive no Bom Jesus, em Quibaxe, no Dange (Fortim), na Matobe e na Maria Manuela. Quando terminei a comissão de serviço em Janeiro de 1974, com 23 anos de idade, iniciei um tratamento forçado contra a malária, tendo conseguido inverter o lastimável estado em que me encontrava (45 quilos), depois de sucessivos surtos a que aquela doença me sujeitou.
Terminava assim a minha vida militar, iniciada quando fui incorporado, a 11 de Janeiro de 1971 no Regimento de Infantaria (RI) 7, em Leiria. Fiz o curso de Radiotelegrafia no Regimento de Transmissões do Porto, até 15 de Agosto de 1971; passei pelo RI4 de Faro, até 16 de Outubro, e fui mobilizado para Angola, tendo aguardado ordem de embarque no RI16 de Évora, até 30 de Novembro. Gozei 10 dias de licença com a família e, depois de alguns dias em Lisboa para vacinações e requisição de material (armamento e ‘enxoval’), eis-me no cais da Rocha do Conde de Óbidos, alinhado como se da parada se tratasse, face ao imponente ‘Vera Cruz’ para embarcar para Angola.
UMA VIDA DEDICADA AO ENSINO
José Manuel Bragança Esteves dos Santos, 58 anos, entregou-se aos estudos a partir da Primavera de 1975. Ao abrigo do regime militar, entre 1975e 1980 conseguiu concluir o 5.º ano dos liceus, o 7.º ano, os três anos do Magistério Primário, o ano Propedêutico e, em 1980, três anos de um Curso de Letras (Inglês-Francês) na Universidade do Porto. Após uma pausa de 10 anos, por doença, regressou à Universidade do Minho para concluir o curso de Administração Educacional, disciplina que hoje lecciona, como professor especializado. Tem três filhos, de 17, 18 e 26 anos.
PERFIL
Nome: José Santos
Comissão: Angola 1971/1974
Força: Batalhão Caçadores 3858
Actualidade: Hoje, aos 59 anos, na Maia
José Santos, Angola (1971-1974)